Sessão Anual Comemorativa dos Mortos (Sociedade de Paris, 1.º de Novembro
de 1868)
Discurso de Abertura do Sr. Allan Kardec
Onde quer que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu nome, aí
estarei com eles" - Mateus XVIII, 20.
Caros irmãos e irmãs espíritas.
Estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos,
para dar aos nossos irmãos, que deixaram a Terra, um testemunho particular de
simpatia; para continuar as relações de afeição e de fraternidade que existiam
entre eles e nós em vida e para chamar sobre eles a bondade do Todo-Poderoso.
Mas, porque nos reunirmos? Não podemos fazer, cada um em particular, o que nos
propomos fazer em comum? Qual a utilidade que pode haver em se reunir assim num
dia determinado? Jesus indica-nos pelas palavras citadas em epígrafe. Esta
utilidade está no resultado produzido pela comunhão de pensamentos que se
estabelece entre pessoas reunidas com o mesmo objectivo.
Mas compreende-se bem todo o alcance da expressão: "Comunhão de
pensamentos?" Seguramente, até este dia, poucas pessoas dela tinham feito
uma ideia completa. O Espiritismo, que nos explica tantas coisas, pelas leis
que nos revela, vem ainda explicar-nos a causa, os efeitos e o poder desta
situação do espírito.
Comunhão de pensamento quer dizer pensamento comum, unidade de intenção, de
vontade, de desejo, de aspiração. Ninguém pode desconhecer que o pensamento
seja uma força; mas é uma força puramente moral e abstracta? Não; do contrário
não explicariam certos efeitos do pensamento e, ainda menos, a comunhão do
pensamento. Para o compreender, é preciso conhecer as propriedades e a acção
dos elementos que constituem a nossa essência espiritual e é o Espiritismo que
nos ensina isso.
O pensamento é o atributo característico do ser espiritual; é ele que
distingue o espírito da matéria: sem o pensamento, o espírito não seria
espírito. A vontade não é atributo especial do espírito: é o pensamento chegado
a um certo grau de energia; é o pensamento tornado força motriz. É pela vontade
que o espírito imprime aos membros e ao corpo movimentos num determinado
sentido. Mas se ele tem a força de agir sobre os órgãos materiais, como não
deve ser maior esta força sobre os elementos fluídicos que nos cercam! O
pensamento age sobre os fluidos ambientes, como o som age sobre o ar; esses
fluidos trazem-nos o pensamento, como o ar traz-nos o som. Pode, pois, dizer-se
com toda a verdade que há nesses fluidos ondas e raios de pensamentos que se
cruzam sem se confundir, como há no ar ondas e raios sonoros.
Uma assembleia é um foco onde irradiam pensamentos diversos; é como uma
orquestra, um coro de pensamentos em que cada um produz a sua nota. Resulta daí
uma porção de correntes e de eflúvios, cada um dos quais recebe a impressão
pelo sentido espiritual, como num coro de música cada um recebe a impressão dos
sons, pelo sentido da audição.
Mas, assim como há raios sonoros harmónicos ou discordantes, também há
pensamentos harmónicos ou discordantes. Se o conjunto for harmônico, a
impressão será agradável; se for discordante, a impressão será penosa. Ora,
para isso não é preciso que o pensamento seja formulado em palavras; a radiação
fluídica não existe menos, seja ou não expressa; se todas forem benevolentes,
todos os assistentes experimentarão um verdadeiro bem-estar e sentir-se-ão à
vontade; mas se se misturarem alguns pensamentos maus, produzem o efeito de uma
corrente de ar gelado num meio tépido.
Tal é a causa do sentimento de satisfação que se experimenta numa reunião
simpática; aí como que reina uma atmosfera moral salubre, onde se respira à
vontade; daí se sai
reconfortado, porque se ficou impregnado de eflúvios fluídicos salutares.
Assim se explica, também, a ansiedade, o mal-estar indefinível que se sente num
meio antipático, onde pensamentos malévolos provocam, por assim dizer,
correntes fluídicas malsãs.
A comunhão de pensamentos produz, assim, uma espécie de efeito físico, que
reage sobre o moral; é o que só o Espiritismo poderia dar a compreender. O
homem sente isso instintivamente, desde que procure as reuniões onde sabe que
encontra essa comunhão. Nas reuniões homogéneas e simpáticas adquire novas
forças morais; poder-se-ia dizer que aí recupera as perdas fluídicas que tem
diariamente, pela radiação do pensamento, como recupera pelos alimentos as
perdas do corpo material.
A esses efeitos da comunhão dos pensamentos junta-se um outro que é a sua
consequência natural, e que importa não perder de vista: é o poder que adquire
o pensamento ou a vontade, pelo conjunto de pensamentos ou vontades reunidas.
Sendo a vontade uma força activa, esta força é multiplicada pelo número de
vontades idênticas, como a força muscular é multiplicada pelo número de braços.
Aceite este ponto, concebe-se que nas relações que se estabelecem entre os
homens e os Espíritos, haja, numa reunião onde reine uma perfeita comunhão de
pensamentos, uma força atractiva ou repulsiva, que nem sempre possui o
indivíduo isolado. Se, até agora, as reuniões muito numerosas são menos
favoráveis, é pela dificuldade de obter uma homogeneidade perfeita de pensamentos,
consequente da imperfeição da natureza humana na terra.
Quanto mais numerosas as reuniões, mais aí se misturam elementos
heterogéneos, que paralisam a acção dos bons elementos, e que são como grãos de
areia numa engrenagem. Assim não acontece nos mundos mais adiantados, e tal
estado de coisas mudará na Terra, à medida que os homens se tornarem melhores.
Para os espíritas a comunhão de pensamentos tem um resultado ainda mais
especial. Vimos o efeito dessa comunhão, homem a homem; o Espiritismo prova-nos
que não é menor dos homens para os Espíritos, e reciprocamente. Com efeito, se
o pensamento colectivo adquire força pelo número, um conjunto de pensamentos
idênticos, tendo o bem por objectivo, terá mais força para neutralizar a acção
dos maus Espíritos; assim, vemos que a táctica destes últimos é impelir para a
divisão e para o isolamento. Sozinho, o homem pode sucumbir, ao passo que se
sua vontade for corroborada por outras vontades, poderá resistir, segundo o
axioma: "A união faz a força", axioma verdadeiro tanto no moral
quanto no físico.
Por outro lado, se a acção dos Espíritos malévolos pode ser paralisada por
um pensamento comum, é evidente que a dos bons Espíritos será secundada. A sua
influência salutar não encontrará obstáculos; não sendo os seus eflúvios
fluídicos detidos por correntes contrárias, espalhar-se-ão sobre todos os
assistentes, precisamente porque todos os terão atraído pelo pensamento, não
cada um em proveito pessoal, mas em proveito de todos, conforme a lei da
caridade. Descerão sobre eles em línguas de fogo, para nos servir de uma
admirável imagem do Evangelho.
Assim, pela comunhão de pensamentos, os homens assistem-se entre si e, ao
mesmo tempo, assistem os Espíritos e são por estes assistidos. As relações
entre o mundo visível e o mundo invisível não são mais individuais, são
colectivas, e, por isso mesmo, mais poderosas para o proveito das massas, como
para o dos indivíduos. Numa palavra, estabelece a solidariedade, que é a base
da fraternidade. Ninguém trabalha para si só, mas para todos, e trabalhando por
todos cada um aí encontra a sua parte. É o que não compreende o egoísmo.
Graças ao Espiritismo, compreendemos então, o poder e os efeitos do
pensamento colectivo; explicamos melhor o sentimento de bem-estar que se
experimenta num meio
homogéneo e simpático; mas sabemos, igualmente, que acontece o mesmo com os
Espíritos, porque eles também recebem os eflúvios de todos os pensamentos
benevolentes que para eles se elevam, como uma nuvem de perfume. Os que são
felizes experimentam uma maior alegria por esse concerto harmonioso; os que
sofrem sentem um maior alívio.
Todas as reuniões religiosas, seja qual for o culto a que pertençam, são
fundadas na comunhão de pensamentos; é aí, com efeito, que esta deve e pode
exercer toda a sua força, porque o objectivo deve ser o desprendimento do
pensamento das garras da matéria. Infelizmente, na sua maioria, afastaram-se
desse principio, à medida que faziam da religião uma questão de forma. Disso
resultou que cada um, fazendo consistir o seu dever na realização da forma,
julga-se quite com Deus e com os homens quando pratica uma fórmula. Disso resulta
ainda que "cada um vai aos lugares de reuniões religiosas com um
pensamento pessoal, por sua própria conta, e o mais das vezes sem nenhum
sentimento de confraternização em relação aos outros assistentes; está isolado
no meio da multidão e não pensa no céu senão para si mesmo".
Certamente não era assim que o entendia Jesus quando disse: "Quando
estiverdes diversos reunidos em meu nome, estarei no meio de vós".
Reunidos em meu nome quer dizer com um pensamento comum; mas não se pode estar
reunido em nome de Jesus sem assimilar os seus princípios, a sua doutrina. Ora,
qual é o principio fundamental da doutrina de Jesus? A caridade em pensamentos,
palavras e obras. Os egoístas e os orgulhosos mentem quando se dizem reunidos
em nome de Jesus, porque Jesus os desautoriza como seus discípulos.
Feridas por estes abusos e por estes desvios, há criaturas que negam a
utilidade das assembleias religiosas e, por conseguinte, dos edifícios
consagrados a tais assembleias. No seu radicalismo, pensam que melhor seria
construir hospícios do que templos, uma vez que o templo de Deus está em toda a
parte, que pode ser adorado em toda a parte, que cada um pode orar em casa e a
qualquer hora, ao passo que os pobres, os doentes e os enfermos necessitam de
lugares de refúgio.
Mas pelo facto de se cometerem abusos, por se afastarem do caminho recto,
segue-se que não existe o caminho recto e que tudo aquilo de que se abusa seja
mau? Falar assim é desconhecer a fonte e os benefícios da comunhão de
pensamentos, que deve ser a essência das assembleias religiosas; é ignorar as
causas que a provocam. Que os materialistas professem semelhantes ideias,
concebe-se; porque, para eles, em todas as coisas fazem abstracção da vida
espiritual; mas da parte dos espiritualistas e, melhor ainda, dos espíritas
seria um contra-senso. "O isolamento religioso, como o isolamento social,
conduz ao egoísmo".
Que alguns homens sejam bastante fortes por si mesmos, muitos largamente
dotados pelo coração, para que a sua fé e a sua caridade não necessitem ser
reaquecidas, num foco comum, é possível; mas assim não se dá com as massas, à
qual é preciso um estimulante, sem o qual elas poderiam deixar-se ganhar pela
indiferença. Além disso, qual o homem que possa dizer-se bastante esclarecido
para não ter nada a aprender no tocante aos interesses futuros? É bastante
perfeito para dispensar conselhos na vida presente? É sempre capaz de
instruir-se por si mesmo? Não; à maioria são necessários ensinamentos directos
em matéria de religião e de moral, como em matéria de ciência. Sem contradita,
esse ensinamento pode ser dado em toda a parte, sob a abóbada do céu, como sob
a de um templo; mas porque não teriam os homens lugares especiais para os
negócios do céu, como o têm para os negócios da Terra? Porque não teriam
assembleias religiosas, como têm assembleias políticas, científicas e
industriais? Aqui está um jogo onde se ganha sempre, sem que ninguém perca.
Isto não impede as fundações em proveito dos infelizes; mas dizemos a mais que
"quando os homens compreenderem melhor os seus interesses do céu, haverá
menos gente nos hospícios".
Se as assembleias religiosas - falamos, em geral, sem alusão a qualquer
culto – muitas vezes se afastaram bastante do objectivo primitivo principal,
que é a comunhão fraterna do pensamento; se o ensino que aí é dado nem sempre
seguiu o movimento progressivo da humanidade, é que os homens não realizam
todos os progressos ao mesmo tempo; o que não fazem num período, fazem-no
noutro; à medida que se esclarecem, vêem as lacunas que existem nas suas
instituições e as preenchem; compreendem que o que era bom numa época, em
relação ao grau de civilização, torna-se insuficiente num estado mais adiantado
e restabelecem o nível. Sabemos que o Espiritismo é a grande alavanca do
progresso em todas as coisas; marca uma era de renovação. Saibamos, pois,
esperar, e não peçamos a uma época mais do que ela pode dar. Como as plantas, é
preciso que as ideias amadureçam para serem colhidos os frutos. Além disso,
saibamos fazer as concessões necessárias nas épocas de transição, porque nada,
na natureza, se opera de maneira brusca e instantânea.
Dissemos que o verdadeiro objectivo das assembleias religiosas deve ser a
"comunhão de pensamentos"; é que, com efeito, a palavra
"religião" quer dizer "laço". Uma religião, em sua acepção
nata e verdadeira, é um laço que "religa" os homens numa comunidade
de sentimentos, de principio e de crenças. Consecutivamente, esse nome foi dado
a esses mesmos princípios codificados e formulados em dogmas ou artigos de fé.
É neste sentido que se diz: "a religião política"; entretanto, mesmo
nesta acepção, a palavra "religião" não é sinónimo de
"opinião"; implica uma ideia particular; a "de fé
conscienciosa"; eis porque se diz também: "a fé política". Ora,
os homens podem envolver-se, por interesse num partido, sem ter fé nesse
partido e a prova é que o deixam sem quaisquer escrúpulos, quando encontram o
seu interesse algures, ao passo que aquele que o abraça por convicção é
inabalável; persiste ao preço dos maiores sacrifícios e é a abnegação dos
interesses pessoais que é a verdadeira pedra de toque da fé sincera. Contudo,
se a renúncia a uma opinião, motivada pelo interesse, é um acto de desprezível
covardia, é, ao contrário, respeitável, quando fruto do reconhecimento do erro
em que se estava; é, então, um ato de abnegação e de razão. Há mais coragem e
grandeza em reconhecer abertamente que se enganou, do que persistir, por
amor-próprio, no que se sabe ser falso e para não se dar um desmentido a si
próprio, o que acusa mais teimosia do que firmeza, mais orgulho do que razão, e
mais fraqueza do que força. E mais ainda: é hipocrisia, porque se quer parecer
o que não se é; além disso é uma acção má, porque é encorajar o erro por seu
próprio exemplo.
O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objectivo, é,
pois, um laço essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os
pensamentos, as aspirações e não somente o facto de compromissos materiais, que
se rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do
que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que une,
como consequência da comunidade de vistas e de sentimentos, "a
fraternidade e a solidariedade", a indulgência e a benevolência mútuas. É
nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família.
Se assim é, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem
dúvida, senhores. No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós
nos glorificamos por
isto, porque é a doutrina que funda os elos da fraternidade e da comunhão
de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas:
as mesmas leis da natureza.
Porque, então, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Porque não
há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na opinião
geral, a palavra religião é inseparável da de culto; desperta exclusivamente
uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma
religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se se
quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com o
seu cortejo de hierarquias, de cerimónias e de privilégios; não o separaria das
ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes se levantou a
opinião pública.
Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção
usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um titulo sobre cujo
valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis porque simplesmente se diz:
doutrina filosófica e moral. As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas
religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza
grave dos assuntos de que se ocupa. Pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces
que, em vez de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que por isto
as tomem por "assembleias religiosas". Não se pense que isto seja um
jogo de palavras; a nuance é perfeitamente clara e a aparente confusão é devida
à falta de um vocábulo para cada ideia. Qual é, pois, o laço que deve existir
entre os espíritas? Eles não estão unidos entre si por nenhum contacto
material, por nenhuma prática obrigatória. Qual o sentimento no qual se devem
confundir todos os pensamentos? É um sentimento todo moral, todo espiritual,
todo humanitário: o da caridade para todos, ou, por outras palavras: o amor do
próximo, que compreende os vivos e os mortos, desde que sabemos que os mortos
sempre fazem parte da humanidade.
A caridade é a alma do Espiritismo: ela resume todos os deveres do homem
para consigo mesmo e para com os seus semelhantes; eis porque se pode dizer que
não há verdadeiro espírita sem caridade.
Mas a caridade é ainda uma dessas palavras de sentido múltiplo, cujo
inteiro alcance deve ser bem compreendido. E se os Espíritos não cessam de a
pregar e a definir, é que, provavelmente, reconhecem que isto ainda é
necessário. O campo da caridade é muito vasto: compreende duas grandes divisões
que, na falta de termos especiais, podem designar-se pelas expressões:
"Caridade beneficente e Caridade benevolente". Compreende-se
facilmente a primeira, que é naturalmente proporcional aos recursos materiais
de que se dispõe; mas a segunda está ao alcance de toda gente, do mais pobre ao
mais rico. Se a beneficência é forçosamente limitada, nada além da vontade pode
estabelecer limites à benevolência. Que é preciso, então, para praticar a
caridade benevolente? Amar ao próximo como a si mesmo: ora, para se amar ao
próximo tanto quanto a si mesmo, amar-se-ão muito; agir-se-á para com outrem
como se quereria que os outros agissem para connosco; não se quereria fazer mal
a ninguém, porque não quereríamos que tal nos fizessem. Amar ao próximo é,
pois, abjurar qualquer sentimento de ódio, de animosidade, de rancor, de
inveja, de ciúme, de vingança, numa palavra, qualquer desejo e pensamento de
prejudicar; é perdoar os inimigos e retribuir o mal com o bem; ser indulgente
para com as imperfeições dos seus semelhantes e não procurar a palha no olho do
vizinho, quando não se vê a trave no seu; é cobrir ou desculpar as faltas dos
outros, em vez de se alegrar em as pôr em evidência por espírito de
aviltamento; é, ainda, não se fazer valer à custa dos outros; não procurar
esmagar a pessoa sob o peso da sua superioridade; não desprezar ninguém por
orgulho. Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade prática, sem a qual
a caridade é palavra vã; é a caridade do verdadeiro Espírita, como do
verdadeiro cristão; aquela sem a qual aquele que diz: "Fora da Caridade
não há salvação", pronuncia a sua própria condenação, tanto neste quanto
no outro mundo.
Quanta coisa haveria a dizer a tal respeito? Que belas instruções nos dão
os Espíritos incessantemente! Sem o receio de alongar-me e de abusar da vossa
paciência, senhores, seria fácil demonstrar que, em se colocando no ponto de
vista do interesse pessoal, egoísta, se se quiser, porque nem todos os homens
estão maduros para uma completa abnegação, para fazer o bem unicamente por amor
do bem, seria fácil demonstrar que têm tudo a ganhar em agir deste modo e tudo
a perder agindo diversamente, mesmo nas suas relações sociais; depois, o bem
atrai o bem e a protecção dos bons Espíritos; o mal atrai o mal e abre a porta
à malevolência dos maus. Mais cedo ou mais tarde o orgulhoso será castigado
pela humilhação, o ambicioso pelas decepções, o egoísta pela ruína das suas
esperanças, o hipócrita pela vergonha de ser desmascarado; aquele que abandona
os bons Espíritos por estes é abandonado e, de queda em queda, vê-se, por fim,
no fundo do abismo, ao passo que os bons Espíritos erguem e amparam aquele que,
nas maiores provações, não cessa de se confiar à Providência e jamais se desvia
do caminho recto; aquele, enfim, cujos secretos sentimentos não dissimulam nenhum
pensamento oculto de vaidade ou de interesse pessoal.
Então, de um lado, ganho assegurado; do outro, perda certa; cada um, em
virtude do livre arbítrio, pode escolher a oportunidade que quer correr, mas
não poderá queixar-se senão de si mesmo pelas consequências da sua escolha.
Crer num Deus Todo-Poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e na
sua imortalidade; na preexistência da alma como única justificação do presente;
na pluralidade das existências como meio de expiação, de reparação e de adiantamento
moral e intelectual; na perfectibilidade dos seres mais imperfeitos; na
felicidade crescente com a perfeição; na equitável remuneração do bem e do mal,
conforme o princípio: a cada um segundo as suas obras; na igualdade da justiça
para todos, sem excepções, favores nem privilégios para nenhuma criatura; na
duração da expiação limitada pela imperfeição; no livre-arbítrio do homem, que
lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal; crer na continuidade que liga o
mundo visível ao invisível; na solidariedade que religa todos os seres
passados, presentes e futuros, encarnados e desencarnados; considerar a vida
terrestre como transitória e uma das fases da vida do Espírito, que é eterna;
aceitar corajosamente as provações, em vista do futuro mais invejável que o
presente; praticar a caridade por pensamentos, palavras e obras na mais larga
acepção da palavra; esforçar-se cada dia para ser melhor que na véspera,
extirpando alguma imperfeição da sua alma; submeter todas as crenças ao
controle do livre exame e da razão e nada aceitar pela fé cega; respeitar todas
as crenças sinceras, por mais irracionais que nos pareçam e não violentar a
consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas da ciência a revelação das
leis da natureza, que são as leis de Deus; eis o "Credo, a religião do
Espiritismo", religião que se pode conciliar com todos os cultos, isto é,
com todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir todos os
espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que ligue todos os homens
sob a bandeira da fraternidade universal. Com a fraternidade, filha da
caridade, os homens viverão em paz e se pouparão males inumeráveis, que nascem
da discórdia, por sua vez filha do orgulho, do egoísmo, da ambição, do ciúme e
de todas as imperfeições da humanidade.
O Espiritismo dá aos homens tudo o que é preciso para a felicidade aqui na
terra, porque lhes ensina a se contentarem com o que têm. Que os espíritas
sejam, pois, os primeiros a aproveitar os benefícios que ele traz, e que
inaugurem entre si o reino da harmonia, que resplenderá nas gerações futuras.
Os Espíritos que nos rodeiam aqui são inumeráveis, atraídos pelo objectivo
que nos propusemos ao nos reunirmos, a fim de dar aos nossos pensamentos a
força que nasce da união. Demos aos que nos são caros uma boa lembrança e o
penhor da nossa afeição, encorajamento e consolações aos que estão
necessitados. Façamos de modo que cada um recolha a sua parte dos sentimentos
da caridade benevolente, de que estivermos animados, e que esta reunião dê os frutos
que todos têm o direito de esperar.
(Allan Kardec)
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